dias quentes & dias tórridos

Quando minha mãe morreu perdi imediatamente a vontade de comer e na sequência a vontade de cozinhar e de tirar fotos. Tudo o que eu mais faço e gosto. Fui voltando aos pouquinhos, comendo, cozinhando, fotografando e fazendo pequenos passeios pela região. No geral até que tive um verão bem agitado. Tive não, ainda estou tendo, pois neste momento em que escrevo está 46 graus celsius. Sim, QUARENTA E SEIS! Tivemos muitas heat waves neste verão, mas essa está sendo a pior, a mais longa e brutal. Por causa do calor, andei acelerando minha produção de fermentados e nas últimas semanas andei fermentando muitas frutas. Elas ficam deliciosas assim, boas pra comer com iogurte de coco no café da manhã. Também voltei a fazer pão e andei refazendo algumas receitas antigas, até adaptei uma receita que não era vegana e deixei ela melhor. Muito do que fiz neste verão foi me livrar de coisas que não significavam mais nada pra mim e entrei numa onda de limpeza. Doei toneladas de roupas, livros, sapatos, pratos, copos, reciclei zilhões de papéis, limpei, reusei, troquei, mudei. Aqui neste blog decidi arquivar todas as receitas com carne, frango e porco. Deixei as com peixes e ovos—até eu mudar de ideia. Muitas dessas receitas tinham históriazinhas pessoais anexadas, mas decidi que não valia a pena deixar nada apenas pela história. Porque minha maneira de ver o mundo mudou muito. Então foi tudo, receita com história e sem história. Não quero mais que esse blog ajude as pessoas a cozinharem com esses ingredientes. E aos poucos a vida vai ficando realmente mais simples e mais leve. Senti um alivio enorme quando me desfiz de uma quantidade absurda de roupas que vinha acumulando e guardando há anos, porque algumas tinham memória afetiva e outras porque eu realmente acreditava que ainda iria usar. Trabalhando em casa por tempo indefinido, não preciso mais ter tanta coisa. Acredito que é assim que vamos evoluindo, olhando pro passado sem melancolia ou saudade, planejando um futuro que faça mais sentido pra quem somos agora.

a dona da receita


Essas fotos são do inicio da década de 90, provavelmente 1993. Nessas fotos minha mãe tinha 60 anos, a idade que eu tenho hoje. Na época eu morava no Canadá e ela queria me mostrar o restaurante natural na praia, onde eles tinham almoçado. O efeito que essa foto dela sentada na frente do prato com arroz integral fez em mim, não tenho como explicar. Tive essa foto fixada na geladeira da minha cozinha canadense por muitos anos. Lembrei disso porque minha mãe sempre foi uma inspiração pra mim. Ela morreu no dia 30 de maio com 89 anos.

Estávamos sentadas na cozinha da casa dela numa tarde calorenta de outono em Campinas, tomando um lanchinho e ela me disse que tinha tido um sonho enquanto descansava—os períodos em que ela dormia durante o dia devido à fadiga da doença. Ela contou que no sonho ela estava andando numa praia e a areia era cheia de pedrinhas que machucavam o seus pés. Ela queria alcançar o meu irmão, que estava mais à frente com outra pessoa que ela não reconheceu, mas as pedrinhas a impediam de chegar até eles.

Menos de dois meses depois de eu ter voltado das férias que passei com ela, as pedrinhas já não a incomodam mais. Espero que ela tenha chegado no Carlos Augusto e que a outra pessoa seja o Carlos Eduardo, meu pai. E que essa metade da nossa família esteja agora junta.

Minha mãe foi um fenômeno. Viveu uma vida intensa, do jeito que ela queria, fez tudo o que quis, nunca desistiu, nunca disse não consigo. Enterrou a mãe, o pai, os cinco irmãos, muitos amigos e familiares, o marido e o filho. Ela disse uma vez pra minha irmã—um dia meu corpo vai dizer, chega Odette! E esse dia chegou. Ela estava doente há mais de três anos, já era paciente paliativa. Estava frágil como um cristal, mas continuava, dentro do possível, com a vida normal dela. Fazia 3 tipos de aula de ginástica, tinha encontros do grupo de estudos de logosofia, para o qual ela estudava e traduzia textos. E fazia toda a administração da casa, resolvia os quiprocós burocráticos, deixou tudo ajeitado pra que ninguém ficasse estressado.

No dia da morte dela, ela foi dirigindo ao mercado pela manhã, almoçou, à tarde foi ao oculista, voltou pra casa, colocou a chave do carro no ganchinho da cozinha, disse “Cheguei Osmarina” e caiu. Achamos que ela morreu quase instantaneamente. Como toda morte deveria ser, sem sofrimento, sem hospital, sem tubos, sem perder a independência. Foi uma morte meio de surpresa, mesmo já sendo algo esperado. Minha mãe não quis causar alvoroço. Deixou apenas esse vazio que nunca mais vai ser preenchido. 🤍

we’ve been sheltering-in-place

Como o resto do mundo, estamos sob ordens de “shelter-in-place” desde 12 de março. Eu e o Uriel ficamos quase 3 meses juntos em casa e foi muito bom, apesar das circunstâncias. Nesse tempo cozinhei muito, algumas receitas novas e diferentes, outras repetecos de sempre. Agora ele voltou pro trabalho na Bay Area e eu continuo indefinidamente trabalhando de casa. Ficamos concentrados nas nossas coisas, na nossa casa, no trabalho, almoçando e jantando juntos, plantamos até uma horta. Quero colocar algumas das receitas aqui. Tudo ficou parado, por uma razão muito compreensível, mas não parei minha fábrica de comidas. Muito pelo contrário, acho até que ampliei, adicionando algumas habilidades extras no meu currículo. Finalmente conseguir fazer meu próprio levain e fazer pão de fermentação natural, e queijos veganos e fermentados e germinados. Muita coisa gostosa, pra alimentar nosso corpo e ajudar a acalmar nosso espírito, nesses tempo tão estranhos.

o jantar com peru [que não comi]

Fiquei doente uns dias antes do Thanksgiving. Nem sei o que tive. Uma febre baixa, um frio, um cansaço. Fiz as sobremesas na noite anterior e no dia do Thanksgiving trabalhei cuidadosamente na cozinha para não me exaurir e fiz metade das coisas no dobro do tempo. Pela primeira vez em muitos anos não servi nenhum queijo de appetizer. Cozinhei muitas coisas, tudo sem nenhum produto laticínio. Foi uma maratona da qual me considerei vitoriosa! Enquanto isso o meu filho preparou um peru forrado com bacon. A casa cheirou a temperos e coisas assando o dia todo. O peru deve ter ficado muito bom, mas eu não comi. E ele levou todos os restos embora. Comemos as sobras dos pratos com legumes no dia seguinte e depois eu transformei isso naquilo e encerrei a jornada desse primeiro Thanksgiving dos novos tempos.