Meu passado me condena

Aniversários são datas empolgantes para pessoas que gostam e sabem como assar um bolo. Pra mim sempre foram datas de sacrifício, desgaste, estresse e humilhação. No aniversário de dois anos do meu filho inventei de fazer um bolo de chocolate. Não tive ânimo de buscar uma foto para ilustrar a tragédia, que pode muito bem passar sem a imagem constrangedora de uma amassarocado de cor marrom, torto e desnivelado, lambuzado e melecado de brigadeiro mole e pegajoso e salpicado aleatóriamente com balinhas coloridas de goma. Felizmente ninguém fez nenhum comentário e até que comeram fatias do desmilinguido bolo. O importante é que o Gabriel aproveitou muito a sua festinha e saiu em todas as fotos com o seu sorrisão feliz. Depois dessa fiquei anos sem fazer bolo por muito tempo, se bem que a atmosfera inebriante dos aniversários ainda me fez cair em algumas armadilhas. Anos atrás resolvi que tinha que superar esse trauma e sentimento de incapacidade. Munida de uma infalível receita da minha melhor amiga, a Marthinha Heleninha Kostyraa, fiz num cuidadoso passo-a-passo um bolo de aniversário, mesmo não sendo aniversário de ninguém. Fiquei tão abobalhada com o resultado positivo, do que posso chamar de meu primeiro bolo, que fiz a receita novamente para o aniversário de uma amiga. Meus arroubos bolísticos são bem raros. Hoje eu sei que consigo fazer um bolo de aniversário semi-decente, se me concentrar e usar uma receita detalhada e testada. O duro é quando resolvo inventar moda, como fiz no aniversário de trinta e cinco anos do Uriel. Eu deveria ter queimado a prova do crime, mas resolvi confessar abertamente—o passado me condena.

o cafona

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O grande equívoco gastronômico do século 20—melão com presunto. Uma aberração que virou uma mania internacional e um símbolo de chiqueresa e fineza durante praticamente duas décadas. Fiz uma cara de repugnância quando serviram melão com presunto no café da manhã de um bed & breakfast onde me hospedei uma vez no Rio de Janeiro. Sei lá, não fui com as fuças daquilo. Mas com o tempo vamos aprendendo a relevar e a memória dos horrores da mesa vai se apagando, até que resolvemos reinventar ou dar uma segunda chance para o indigníssimo prato. No caso do melão com presunto, bati definitivamente o martelo com o veredito de culpado. O delinquente deve ser condenato ao ostracismo, sem direito a apelação.
Outras comidas infâmes cujas receitas foram adaptadas, viraram moda e foram consideradas chiques, depois amaldiçoadas e finalmente resgatadas e ressuscitadas em nostálgicos revivals: estrogobofe de carne, frango ou camarão com molho de catchup e creme de leite—felizmente não inventaram o gobofe de porco—cocktail de camarão, aspic de legumes, salpicão de frango com abacaxi, surpresa de atum, hors d’oeuvre de salsicha, queijo e azeitona, pastinha de sopa de cebola com creme de leite, crepe suzette, charlotte russe, fundue de chocolate, eteceterá, eteceterá…

salada de trigo bulgur
[com queijo feta e pinoles]

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bulgur salad with feta and pine nuts
da revista Everyday Food de agosto, 2007
1/2 xícara de bulgur [trigo de quibe]
sal grosso e pimenta do reino
2 colheres de sopa de pine nuts [pinoles] tostados
4 colheres de chá de suco de limão
2 colheres de chá de azeite
1/2 xícara de feta cheese esmigalhado
1/4 cebola roxa picadinha
1/2 xícara de salsinha picada
1 pepino pequeno descascado e picado
Folhas de alface – não usei.
Deixe o bulgur de molho em 1 xícara de água fervendo com uma pitada de sal por meia hora. Coe pra retirar toda água. Faça um molho com o suco do limão, azeite, sal e pimenta. Acrescente o bulgur, o pepino, cebola e salsinha. Misture bem. Adicione o queijo feta e os pinoles. Misture bem e sirva sobre as alfaces, se quiser.

O sabor de cada um

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A inconveniência dos dias quentes é a grande desculpa para que eu jogue as panelas e frigideiras para os ares, ignore minhas 687906543 mil fontes de receitas e me acomode no conforto da simplicidade e da improvisação. Essa é uma excelente oportunidade de saborear os alimentos na sua maior intensidade. Imaginem uma refeição onde cada prato contém apenas um ingrediente, maximizado e concentrado, onde nada mais que uns frugais temperinhos influem no resultado final. Pra mim isso é a essência do verão.

Dois peitos de franguete orgânico temperados com suco e raspas de um limão verde, pimenta vermelha em pó, sal grosso e uma dose de tequila, e assados na churrasqueira. Duas abobrinhas amarelas, cortadas ao meio, retirada as sementes, temperadas com sal, pimenta do reino e azeite, a assadas na churrasqueira. Salpicadas com ciboulettes picadinhas antes de servir. Uma salada de folhas verdes e ervas, temperada com sal, pimenta do reino, azeite e suco de limão. Milhos amarelos e tenros cozidos na água e sal. Uma baguete de pão francês fresquinho com manteiga caseira. Sobremesa: melão em fatias, framboesas e red currants frescas.

Comemos como se estívessemos diante de um banquete pantagruélico. Foi uma orgia de sabores puros e simples, que pudemos degustar sem interferências ou intrusões. Cada sabor, único. Nenhum alimento foi dominado, nenhum se subjulgou. Foi uma refeição equilibrada, sem distinções ou privilégios, onde cada sabor se sobressaiu por suas próprias qualidades. Tudo isso é uma ótima desculpa pra não cozinhar, não é? Ôoo, se é!