♥ ovos de FelizBertas ♥

ovos-feliz14.jpg

No farmers market de Woodland, depois de uma semana de calorão:
posso ter uma duzia de ovos?
não tenho ovos hoje. as meninas resolveram não botar nada essa semana.
é o calorão!

[ quando faz muito calor as meninas descansam. tive que entrar na lista de espera pra conseguir comprar essa dúzia, que estou usando com muita parcimônia. ]

we don’t speak no mexicano

A novidade saiu até no jornal da cidade—a abertura de uma lojinha de produtos indianos na Main Street de Woodland. Fui correndo conferir, porque geralmente nesses mercadinhos étnicos se acha muita coisa legal. Como eu normalmente vou no mercadinho indiano de Davis, a possibilidade de ter uma opção na cidade onde moro me pareceu perfeito. A loja fica num quadradinho minúsculo num daqueles strip malls que têm varias salas num formado de “U” com um bloco extra no centro. O dono da loja, Um indiano muito bem apessoado, estava lá ouvindo hits indus num equipamento super high tech. Assim que adentrei o micro espaço percebi que estava numa enrascada. Iria ser difícil sair dali sem comprar nada. Mas foi um pouquinho pior.

Em questão de um minuto o moço já estava no meu calcanhar, me mostrando todos os produtos [todos NUMBER ONE!] indianos e alguns chineses [uma coleção de peixe em lata] que ele herdou do proprietário anterior, que era chinês. Pra tudo ele tinha um comentário elogioso, além do fato de tudo que ele oferecia ser NUMBER ONE, melhor qualidade e barato. Me mostrou garrafas de ghee [tomo uma colher por dia!], as variedades de lentilhas [bom pra gente da nossa idade!], os feijões [esse verde é o melhor, você tem que dar pro seu marido todos os dias!] as farinhas de grão de bico [e me deu receita de um pudim] e os temperos [melhor curry! você usa curry?] e os pickles, chutneys, salgadinhos de ervilha, amendoim e pimenta, caixas com misturas para fazer todo tipo de comida indiana, eteceterá. Fui pegando uma coisa aqui, outra lá, nem sabendo se iria mesmo usar, apenas convencida pelo entusiasmo dele.

indiano—você prepara receitas indianas?
eu—na verdade eu não cozinho nada indiano.
indiano—o que você cozinha então? mexicano?
eu—também não. eu sou brasileira.
indiano—ah, brasileira! você fala mexicano então?
eu—não. eu falo português. nem os mexicanos falam mexicano. hahaha!
indiano—ah, e esse português é um dialeto mexicano?
eu—acho que não é! [mas posso estar enganada, né?]
indiano—se você não cozinha mexicano, cozinha o que?
eu—faço muita comida italiana.
indiano—ah, italiano! vem cá então…
[me leva até o freezer e me mostra pacotes com pão Naan congelado]
indiano—olha, muito parecido com comida italiana, igual pizza!
eu—ah, sim, IGUALZINHO [numa outra dimensão]
indiano—obrigado. volte sempre!
eu—com certeza! [não voltarei!]
indiano—e avise seus amigos!
eu—pode deixar! [que não avisarei ninguém!]

os habitués

Temos esse hábito de voltar sempre ao mesmo lugar e pedir sempre a mesma comida. Quando elegemos um lugar como bom e gostamos da comida, voltamos e repetimos. Não é sempre que isso acontece, mas temos nossas preferências. Uma delas é a pizzaria da esquina do cinema, onde podemos comer uma salada fresquinha, um sanduíche com batatas fritas, pizzas bem razoáveis e beber vinhos locais. O ambiente é agradável, com mesas internas e externas—na varanda e no jardim aproveitadas durante quase todo o ano graças à aquecedores instalados no teto da varanda e um fire pit no jardim.

Vamos lá com uma certa frequência, muito mais do que tínhamos contabilizado. Pedimos sempre uma salada caesar para dividir entre nós dois, eu bebo uma taça de merlot, petite sirah ou shiraz de vinícolas locais, o Uriel bebe uma Buckler, a cerveja sem álcool. Depois pedimos uma pizza margherita de 12 inches. Todo sábado vamos nessa pizzaria e pedimos a mesma coisa.

Num sábado fomos jantar mais tarde do que de costume, depois de sair de uma sessão de cinema. Decidimos não pedir a salada e o Uriel decidiu beber somente água e não pedir a Buckler. O garçon, provavelmente um estudante da universidade como a maioria dos fornecedores de serviços nos restaurantes da cidade, veio anotar nosso pedido:

F—vou beber uma taça de merlot, por favor.
U—pra mim, somente água, obrigado.
G—não vai pedir uma Buckler hoje?
U—[cara de surpresa] ahn, hoje não.
F—e queremos uma margherita de 12 inches.
G—não vão dividir a salada hoje?
F&U—[cara mais do que de surpresa] ahn, não…
G—então hoje vai ser só o vinho e a pizza?
F&U—[sorriso petrificado] sim, só isso, obrigado!

Logo que o garçon se retirou, depois de fazer uns salamaleques meio sem graça, certamente motivado pela nossa reação com as perguntas dele, tivemos um ataque de riso. Eu tive que até ir ao banheiro pra me recompor, enxugar lágrimas e assoar o nariz. Foi um choque perceber que o garçonzinho não só nos conhecia, como sabia até que o que costumavamos pedir. Como assim, não vai beber a Buckler? E não vão dividir a salada? O que está acontecendo com vocês hoje? Algum problema, querem conversar sobre o assunto? Essa mudança na nossa rotina do sábado à noite deve ter desalinhado o chakra do moço, que já estava com o nosso pedido praticamente anotado mentalmente.

migalhas dormidas do teu pão

Tenho perfeito conhecimento da existência de pessoas meio etéreas, que possuem um talento quase mágico e para quem assar um bolão ou um pão fofinho, fazer umas dezenas de cookies ou uma suculenta torta, é a coisa mais simples e corriqueira deste mundo. E elas são capazes de fazer tudo isso sem receita, tricotando, se equilibrando em cima de patins, praticando truques de malabarista com bolas coloridas, dançando um frevo e podem até colocar uma venda nos olhos ou amarrar as mãs nas costas, o resultado será sempre divinomaravilhoso. Pois bem minha gentê, tenho um anúncio muito sério pra fazer: eu não sou uma dessas pessoas. Nem de perto. Nem de longe.

E ando me sentindo imensamente frustrada por não fazer parte dessa turma. Me arrasa não ter receitas e fotos de comidas lindas, perfeitas e deliciosas pra colocar aqui, porque ultimamente parece que tenho feito tudo com duas mãos esquerdas, dois olhos caolhos e uma cabeça nebulada. Minhas reclamações parecem ampliar e multiplicar os desastres, já começo tudo prevenida e fico esperando pelo pior. Me transformei numa velhota rasmungona e ranzinza, que bota fogo no pano de prato, espanta os gatos com o barulho das coisas caindo e quebrando, xinga palavrões e puxa os cabelos de raiva quando é forçada a jogar bons ingredientes na lata do lixo.

Outro dia mesmo conclui que ando acumulando mais histórias de desastre do que de sucesso e que já estou bem cheia disso. Não tem mais graça contar que deu tudo errado. Estou precisando contar vantagens, dizer que tudo ficou uma delícia, que os comensais lamberam os beiços, provocar uma salivação coletiva com fotos realmente hard core, mostrar que não estou aqui para brincadeiras, encontrar o antídoto para essa praga rogada pela minha fada madrinha má.

Mas enquanto não descubro a palavra mágica que vai me dar acesso à porta dos fundos para o clube das cozinheiras de sucesso, me restam duas alternativas: não escrever nada ou escrever as minhas desventuras.

Inventei de fazer um pão, porque estava folheando um livrão que tenho só com receitas com os citros e dei de cara com uma foto maravilhosas—pão com limão e macadâmia. O mundo parou pra mim naquele momento e a única coisa que pensei dalí em diante foi fazer o tal pão. Não vou aborrecê-los com detalhes chatos, de como me atrapalhei com o primeiro procedimento e usei um fermento morto, mas no primeiro dia o pão não deu certo. Joguei fora todos os ingredientes, entre eles cinco xícaras da melhor farinha que tem no mercado, a mais cara, além do ovo caipira, leite e manteiga orgânica e tals. No dia seguinte, me recuperei da derrota, sacudi a poeira e comecei tudo de novo. Agora estava mais preparada, tinha entendido o tal procedimento da esponja, tinha comprado fermento vivinho e novinho e tinha lido e relido meticulosamente por mil vezes as instruções. Mãos à massa.

Não dá pra explicar com palavras o meu estado de desânimo quando vi que a massa não ficou macia, muito menos elástica e não cresceu depois de uma hora e meia descansando num ambiente escuro e morno. O Uriel tentou me ajudar, analisando todas as instruções do livro milimétricamente, lendo, relendo, comparando as medidas, tentando em vão encontrar um erro que pudesse justificar meus dois fracassos seguidos. Enquanto isso eu arrastei ferros pela cozinha, lamentei, lamentei um pouco mais, me dei auto-chicotadas imaginárias, praguejei até não poder mais e até chorei. Finalmente respirei fundo, engoli o orgulho e decretei—esse pão sai de qualquer jeito! mesmo que não cresça e vire uma pedra. eu faço torradas!

Coloquei o pão já na forma forrada e untada no segundo processo de descanso, já com as macadâmias e as raspinhas de limão incluídas, coloquei no forno, cobri, dei uma bela banana pra tudo, virei minhas costas pro fogão e subi pra tomar banho.

Quando voltei, uma hora depois, o pão tinha duplicado de tamanho. Com ar blasé liguei o forno e coloquei o tal pra assar. Voltei pra desligar o forno e desenformar o pão e apesar dele ter ficado enorme e até meio bonito, não consegui celebrar a vitória. Estava com muita raiva do livro dos citros, da receita, de mim mesma e de todos os padeiros profissionais ou amadores que um dia assaram seus pães com facilidade e sucesso.

No outro dia, enquanto comíamos fatias grossas do pão com limão e macadâmia que ficou bem gostoso, o Uriel comentou animadamente:

no final o pão deu certo, hein?
é, [grawww] deu!

foi o esquilo que me encarou

Na frente da porta de entrada para a minha sala no meu trabalho tem um arbusto que se enche de pequenas flores no verão e que no outono viram frutos ovalados com uma cor verde bem escura. Esse arbusto é um pé de feijoa, uma fruta deliciosa também conhecida como goiaba mexicana. Eu levei muito tempo para me tocar que aquelas frutinhas eram feijoas, já que elas desaparecem rapidamente por serem vilmente atacadas e devoradas ainda verdes pelos esquilos.

Voltando da minha caminhada estica-pernas das três da tarde observei uma comoção esquilanesca nas proximidades do pé de feijoa. Foi quando peguei no flagra três esquilos, que já roiam covardemente as tais frutinhas. Minha presença e cara nada amigáveis fizeram com que dois dos esquilos se pirulitassem e fossem procurar por coisinhas comestíveis na grama de outra árvore mais próxima. Mas um deles não se moveu, ficou ali plantado e me encarou. O esquilo me encarou sem piscar, nem disfarçar, não abaixou a cabeça, não vacilou. Ele simplesmente me encarou. E eu encarei de volta, enquando ele subia pelos galhos da árvore, sem nunca virar a cabeça, sempre firme me encarando. O duelo de olhares durou alguns minutos. Foi emocionante. Não sei por que, mas eu tive quase certeza de que aquele esquilo era uma esquila.

S.O.S Kitchen

Uma caixa de primeiros socorros fica permanentemente numa das gavetas da cozinha. Não estou querendo me fazer de vitima aqui, mas eu me machuco TODO SANTO DIA e garanto—juro, que muitos desses pequenos acidentes não são minha culpa. Eu me corto na folha do livro de receitas que estou olhando, na borda da forma de metal que estou lavando, ou quando vou pegar uma louça no escorredor fatio o dedo no mandoline que está ali proximo, e queimo os pêlos do braço nem sei como, e quando estou refogando algo no azeite quente uma lasca de comida dá um salto de trapezista e aterrisa dentro do meu olho, me corto na borda da lata vazia de comida dos gatos quando vou colocar outra coisa na lata de lixo, prendo o dedo fechando a gaveta ou tampando a panela de ferro. Manchas roxas, cortes sangrentos ou cascudos, bolhas, esfolamentos e cicatrizes abundam. E pra completar essa minha rotina de cumprimento da pena cármica, ainda tem o animal. Sim, o animal, aquele que sempre me espera passar pelo tapetinho entre a sala de jantar e a cozinha pra dar o bote. Sim, o bote que é de brincadeira, mas às vezes machuca. Ele não tem intencão de machucar, mas quando eu passo ele dá um pulinho e lasca uma patada. O alvo da patada é a minha perna. E as patas têm garras afiadas. Então nesta semana eu já colecionei uma bolha, um corte do mindinho, um dedo roxo esmigalhado e três arranhões gigantes na parte de cima do meu pé esquerdo, perpetrados pelo animal, o ANIMAL!

mise dis place

Que atire a primeira pedra quem nunca fez uma pataquada dessas: separar a receita, sair pra comprar os ingredientes, voltar e começar a arranjar tudo, fazer o mise en place e notar que dois dos ingredientes principais, insubstituíveis, estão faltando. Eu faço isso o tempo todo, mesmo escrevendo e carregando listas, mesmo checando e re-checando. É como ler a receita várias vezes e mesmo assim esquecer de acrescentar um ingrediente—e logo aquele que vai fazer diferença, interferir no resultado, provocar o total fracasso.

Ainda bem que era um domingo e eu estava inteiramente à disposição de fazer a tal receita. Primeiro passei no Co-op e comprei coisas, muitas coisas. Depois voei até a árvore de ninguém, empastelei a sola dos meus sapatos com aquele grude de figo podre com grãos de pedra e apesar de usar luvas, fiquei com um braço coçando. Voei novamente para casa, onde a gataiada nem conseguia dormir, tal era o meu entra e sai. Reli a receita, em português e inglês e fui me preparando para transformá-la num estrondoso sucesso quando vi que não tinha um dos ingredientes principais—que eu jurava que tinha, e o outro tinha só metade da quantidade necessária. A frustração que eu senti não teve medida. Voltei ao Co-op tão fula da vida e soltando bufadas pelas ventas, que até esqueci de revestir os sapatos e só fui notar quando cheguei no supermercado que estava vestindo meus chinelos de dedo encardidos. Corri para pegar os ingredientes faltantes sem me permitir olhar mais nada e entrei na fila do caixa que ainda não tinha me atendido naquele dia.

A receita foi realizada, com um errinho aqui, outro ali. Nada grave. O único problema que me aflige agora é—quem vai comer tudo isso? Pior que inventar moda, esquecer ingredientes e ficar num pra lá e pra cá frenético, é inventar moda e não ter ninguém pra dividir a história e os garfos.