alguma coisa está fora da ordem

7:30!!!!
Cacilda, o relógio não tocou!
Carvalho, eu não armei o relógio!

Meu mau humor matinal é conhecido e notável. Por causa dele eu acordo muito mais cedo do que precisava, para ter tempo de me recompor e chegar no trabalho com uma cara apresentável e um ânimo mais apropriado para me integrar civilizadamente com outros humanos. Eu não faço nada antes de beber uma xicarazona de café com leite morno e sem açúcar, depois ler e-mails, mordiscar uma bolacha, tudo feito no escuro e em silêncio. Só depois desse período de reajustamento no planeta dos acordados, com os neurônios re-conectados, é que eu vou tomar banho, decidir roupa, depois fazer a lancheira, porque meu café da manhã não é suficientemente robusto para me sustentar até a hora do almoço. Meu ritual matinal leva quase uma hora e meia, até que eu finalmente possa montar na minha bicicleta e pedalar pelo campus para iniciar o meu dia.

O que acontece quando a rotina é interrompida e invertida, numa fatídica manhã quando o relógio não tocou, porque o cabeção esqueceu de armá-lo na noite anterior? Correria, pânico, caos, incredulidade, amargura! Invés de descer pra beber tranquilamente o meu café, entrei no chuveiro e depois desci correndo para preparar a lacheira—e donde estava a lancheira? ela tinha passado a noite na bicicleta, com um pote de iogurte dentro e a casca da banana congelada—pra poder tomar café no trabalho. Montei na minha bicicleta e pedalei pela neblina densa e gelada, de cara amassada, estômago vazio, um humor que já tinha apodrecido de tão amargo, os olhos lacrimejantes de estupor e insatisfação. Não sei como cheguei no trabalho, não sei como estacionei a bike, não sei como consegui articular um good morning pros meus colegas, não sei como lembrei da senha para entrar no meu sistema, não sei como encontrei uma caneca maior no armário, não sei como enchi ela de água quente e fiz o café com leite morno e sem açúcar. Não sei como desembrulhei e mordi as torradas—eu consegui colocar duas fatias de pão de passas com canela na torradeira e embrulhar em papel alumínio?

Uma hora depois, uma xícara de café com leite sorvida, duas torradas mastigadas, a amargura foi desaparecendo, fui abrindo os programas e iniciando minhas tarefas, liguei a música, olhei pela janela, vi as bicicletas passando, o sol que começava a despontar por detras dos prédios, a neblina finalmente tinha se dissipado, da cidade e da minha cabeça.

meu vinagrete para feijoada

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Usando os ingredientes que eu tinha em mãos, fiz uma vinagrete diferente para acompanhar a feijoada. Deu certo, pois todo mundo elogiou e não sobrou nadinha! Não usei tomates pois eles estão pálidos e sem gosto, por estarem fora de época. Usei shallots [echalotas] e salsinha picadinha, e coloquei uma pimenta jalapeño. Poderia ter colocado mais uma, mas tenho um medão dessas muchachas, então não ficou um molho super apimentado. Temperei com bastante suco de limão, um pouquinho de vinagre, sal a gosto e bastante azeite.

no caldeirão da bruxa

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Para retribuir a deliciosa macarronada que ele fez para nós, eu prometi fazer uma feijoada. Demorou um pouco, porque ele viajou, outros amigos viajaram, mas finalmente arranjamos a data. Feijoada é um prato que todo mundo curte e é relativamente fácil de fazer. Só precisa ter um pouco de organização e amigos gentis que se ofereçam pra ajudar com os detalhes e cortar e picar. A preparação é que consome tempo. Coloquei o feijão de molho dois dias antes. Coloco de molho na panela de ferro grossa, onde ele vai cozinhar. No dia seguinte cozinho. Depois tempero com um refogado de alho, que eu fritei junto com bacon. Eu usei um bacon bem magro, que quase não soltou óleo. Depois juntei o feijão cozido, sal, pimenta, folhas de louro e as carnes cortadinhas—carne seca, paio, lingüiça calabresa, umas mini salsichas defumadas e ham hocks. Dai cozinha, cozinha, cozinha, cozinha, até o caldo ficar bem grosso. Os acompanhamentos foram arroz branco [basmati], farofa de farinha de mandioca [frita com cebola, manteiga e banana], couve [collard greens] refogada no azeite e alho, um molhinho vinagrete e fatias de laranja. Caipirinha, cerveja e vinho pra acompanhar. Em pleno inverno, a feijoada é uma comida extremamente reconfortante.

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branco total

Porque estou atolada de trabalho e de repente me deu aquele vazio culinário-filosófico-existencial, convido todos para um passeio pelas catacumbas dos meus arquivos. Divirtam-se!

Homem que não sabe cozinhar é uma desgraça.
Um engenheiro na cozinha

Ainda não perdi o medo dessas coisinhas.
Peppers

As mazelas de uma sociedade globalizada.
Friday night fever

Presente para uma amiga querida.
Flores para E.

Uma das minhas saladas favoritas, que eu adapto e readapto.
Niçoise

Só porque muitas vezes eu me sinto exatamente assim.
Goin’ nowhere in particular

polenta taragna com alho-poró

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Sem paciência para pensar em nada mais complicado que ferver água e jogar algo dentro, mas necessitando de uma comida reconfortante, optei pela polenta, acompanhada por alho-poró refogado. Pronto! A polenta taragna—que é uma mistura de milho e trigo sarraceno, com uma cor linda e textura densa, foi cozida somente na água. Eu pensei em usar um caldo de galinha [ou melhor, de peru] que fiz na segunda-feira, mas passei em branco, como eu sempre faço. Oh well, com água ficou tão bom quanto. Refoguei o alho-poró numa mistura de azeite e manteiga, tasquei umas pitadas de sal. A polenta ganhou uns pedacinhos de queijo azul de Point Reyes, que derreteram e sumiram na massa. O jantar perfeito, para esse meio de semana um bocado atribulado.

what would Michael Pollan eat?

Michael Pollan acabou de lançar um livro novo—In Defense of Food: An Eater’s Manifesto, que eu já comprei e estou esperando chegar. O livro parece ser a última palavra de Pollan no assunto alimentação. Ele quer rolar a bola pra frente, pesquisar e escrever sobre outros assuntos. O negócio é que o impacto do O Dilema do Onívoro o transformou numa espécie de guru do comer bem e certo, o revolucionário da alimentação e da conscientização coletiva sobre os horrores da criação de animais aqui nos EUA. E vai ser difícil ele se esquivar desse papel agora. Uma entrevista com ele hoje no San Francisco Chronicle dá algumas dicas—What would Michael Pollan eat?
O que Pollan tem a dizer: eat food. not too much. mostly plants. A base dessa revolução é simplesmente o retorno à maneira tradicional de se alimentar. Do tempo em que comer estava intimamente relacionado com o prazer dos sabores e a manutenção da saúde do nosso corpo. Ele aconselha que não se caia na armadilha de tratar a comida como suplemento de dieta. Comer blueberries pelos antioxidantes e não pelo seu delicioso sabor. Ele também pede que todos ignorem as dietas low-fat e low-carb. Comer uma boa variedade de frutas, verduras, legumes, grãos. Escolher a proteína com cuidado, tentando comprar carne do boi que pastou, da galinha que ciscou livremente, do porco que chafurdou, do peixe pescado com linha, prestando atenção na sustentabilidade de todo esse processo.

Jacob’s cattle beans

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Esses feijões heirloom vieram como treat na cesta orgânica desta semana. Deixei de molho de um dia para o outro e depois cozinhei até eles ficarem macios. Escorri o feijão [e guardei a água do cozimento para sopa] e temperei ainda bem quente com bastante azeite, um pingo de vinagre de champagne, flor de sal e bastante coentro picado, que era a erva fresca que eu tinha disponível. Os feijões foram o centro da refeição. Simples assim.

pão de queijo da Neide

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Neide, você transformou o nosso jantar num momento feliz, com sua prática receita de pão de queijo. Muito melhor do que a que eu tinha e usava em tempos longínguos. Segui a receita à risca, usei até o alecrim e a Flor de Sal, não mudei nada, nadinha. Essa vai pro meu caderninho!
pãozinho de polvilho com queijo
½ xícara de leite (120 ml)
¼ de xícara de azeite (60 ml)
1 ovo caipira pequeno
1 xícara de polvilho doce (tapioca starch, fécula de mandioca, goma seca)
2 colheres (sopa) de queijo parmesão ralado
1 pitada de sal ou a gosto
Flor de sal e alecrim para espalhar sobre a massa
Coloque no copo do liquidificador o leite, o azeite, o ovo, o polvilho, o queijo e o sal. Bata bem e distribua em forminhas de empada não untadas. Espalhe um pouco de flor de sal e folhinhas de alecrim por cima e leve ao forno bem quente. Deixe assar por cerca de 20 minutos. Rende: 24 pãezinhos.

that’s the name of the game

Nesses tempos em que somos todos super modernex com nossas sacoletas reusáveis, surfando na crista da onda da modinha eco-lógica, me lembrei do supermercado canadense onde eu fazia minhas compras semanais, no inicio dos anos 90. O Real Canadian Superstore já tinha naquela época, e com certeza muito antes de eu aterrisar no Alaska-toon, um sistema de sacola reusáveis que era muito bem bolado e implementado. Pensando no esquema de hoje, eles ainda estão a frente de todos os supermercados norte-americanos que eu conheço. Notem bem, lá no Superstore não havia a opção ou domínio das sacolas de papel, como existe aqui. O que imperava lá era o seguinte: eles tinham umas sacolas de plástico amarelo muito das vagabas, que não seguravam nada, rompiam facilmente e que eram vendidas por unidade—acho que custavam dez centavos cada. E eles tinham as sacolas reusáveis, também de plástico, mas aquele plástico resistente, as ditas seguravam mesmo, eu tive as minhas por muitos anos e nunca precisei repôr. Essas, que você usava e re-usava, custavam vinte e cinco centavos. Pescou a estratégia? Gasta quinze centavos a mais agora, mas economiza dezenas de patacas futuro adentro. O lema do Superstore era exatamente esse: economia! E funcionava. Eu, por exemplo, carregava comigo as sacoletas robustas toda vez que ia às compras, mesmo durante aquele inverno miseráver que fazia a gente esquecer até quem era, o que estava fazendo ali, o endereço, o passado, os pecados, mas as sacolas reusáveis nunca eram esquecidas.

Outro esquema muito bem bolado desse supermercado era o dos carrinhos no estacionamento. Imaginem semanas de frio intenso, tipo mais frio que um deep-freezer. Seria desumano botar um funcionário vestido de astronauta, recolhendo carrinhos espalhados pelo lugar. O Superstore tinha um estacionamento interno, mas tinha dias que não se achava lugar e tinha-se que estacionar o carro lá fora mesmo. Então pra evitar o caos de carrinhos abandonados pelos clientes ansiosos para se mandarem dali e não precisar torturar nenhum funcionário, o supermercado adotou o seguinte sistema: os carrinhos ficavam presos numa estrutura, você ia até lá, enfiava um quarter—uma moeda de vinte e cinco centavos, e retirava o carrinho, que automáticamente se soltava do mecanismo. Quando você terminava, levava o carrinho de volta, encaixava e plic, pegava de volta seu quarter. O que um ser humano não faz por vinte e cinco centavos, hein? Os carrinhos voltavam direitinho para o seu lugar. Era muito raro ver um carrinho solto, porque também se aparecesse um ele iria ser logo agarrado por alguém saltitante de alegria por ter lucrado um quarter!

Incrível como se pode alcançar a ordem, o progresso e a civilidade apenas mexendo no bolso do povo. E nem precisa ser com altas somas. Uns centavos já são mais do que suficientes.