Tive uma certa inveja de uma pessoa que conheci anos atrás. Não me lembro exatamente porque, mas ela tinha perdido o olfato. Quando fiquei sabendo disso, imaginei as possibilidades de uma existência sem precisar e poder sentir cheiros. A idéia me conquistou.
Só pra ilustrar, eu tenho uma cara de Ana Magnani que incluí aquele nariz dramático caracteristico. Eu acho que a napa influí bastante na minha habilidade de cheirar, pois muitas vezes tamanho é documento. O nariz não é feio e combina comigo, pois não sou num tipo mignon. Mas o problema é que somado ao narigão, eu tenho um olfato super-hiper sensível e sinto o cheiro de absolutamente tudo.
Muitas vezes estou reclamando de um fedor qualquer e o Uriel está olhando pra mim com aquela cara de patzo, como que não está entendendo o motivo de tanta algazarra. Ele não sente os mesmos cheiros que eu sinto.
E o mundo é um povoado extremamente fedorento. Tem dias que eu penso na mulher sem olfato e desejo ardentemente ser como ela. Assim eu não precisaria cheirar tanto cheiro repugnante. Eu sinto o ar empestiado de bosta de vaca quando o vento sopra de um determinado jeito e traz pro meu lado a caatinga dos estábulos da UC Davis. E é tanto chulé, sovaqueira, bafão. Já passei pelo amargura de trabalhar com alguém que retocava o perfume de gardênia a cada meia hora. E com outro alguém que não depilava o sovaco e não usava desodorante por questão religiosa ou cultural e conviveu dois longos verões comigo. Cheiro de xixi de gato, de cocô de gente, de bodum, de lixo, de comida podre, de naftalina, de gente que cheira estranho—pois não tem gente que cheira estranho? E cheiro de mofo, de revista velha, de garage sale, cheiro de pum, cheiro de cachorro molhado, cheiro de carpete de restaurante, de sabonete vagabundo, de foto velha, de casaco guardado no armário.
Meu olfato é tão aguçado que eu sinto o cheiro das máquinas, dos pistachos, dos computadores, dos laboratórios nas roupas do Uriel. Muitas vezes é tudo tão insuportável, que eu arriscaria perder a capacidade de sentir o cheiro da brisa, da chuva, da terra, do sol, do pão assando e das frutas, flores e plantas, só pra viver confortavelmente na ignorância do quanto esse nosso mundo é fétido!
*este texto foi escrito em 2001 para o The Chatterbox e reciclado para ser publicado aqui.
**disclaimer: eu gosto de escrever e quando tenho uma idéia que acho legal desenvolvo e transformo num texto. acho que dá pra perceber que um texto é apenas um texto, não? eu não quero perder o olfato, nem intenciono fazer uma operação pra isso. tenho muita compaixão pelos que sofrem de alguma incapacidade física, mas isso é um texto, apenas um texto.