minha cozinha social

Tenho memórias de muitas cozinhas, tanto nas diversas casas que morei durante a infância e adolescência, quanto nas minhas moradas de pessoa jovem casada com filho. Na minha primeira casa de pessoa jovem casada com filho, a geladeira era bem pequena, o chão era cor de ferrugem e as paredes tinham azulejos decorados com tons de beige e marrom. A pia tinha um tampo de mámore cor de gelo e era pequena e baixa para a minha altura. Eu sempre ficava com a barriga molhada enquanto lavava coisas. O fogão era o mais chique, presente de casamento que destoava de tudo mais. Nessa cozinha pequena eu fiz muita comida ruim, joguei muita comida fora, lembro de um frango inteiro indo pro lixo, pois achei que o cheiro estava estranho. Nessa cozinha eu fazia as papinhas de legumes sem carne pro Gabriel e ele comia sentado num cadeirão. Um dia eu fui pra universidade e esqueci no fogo uma leiteira com água esquentando uma mamadeira. Estava no meio da aula quando me deu um click. Voei aos passos triplos pelas ruas, correndo como uma enlouquecida. Cheguei em casa esbaforida e cega de pavor e encontrei a panela ainda no fogo, chiando. A base da mamadeira derreteu e a leiteira ficou imprestável, mas a casa não pegou fogo. Ali uma vez eu cozinhei feijão numa das centenas de infrutiferas tentativas de fazer um feijão bom. Deixei a vasilha esfriando em cima da mesa e o Gabriel foi lá e virou tudo no chão cor de ferrugem. Era tarde da noite, o guri acordado aprontando todas, um disco da Yoko Ono tocando e eu lavando o chão, louca da vida e rindo ao mesmo tempo, porque as crianças às vezes fazem a gente rir nas horas mais insólitas. Era um prédio de quatro apartamentos por andar, um de frente pro outro, as portas da frente e as cozinhas. Da janela da minha cozinha eu via a cozinha do vizinho, que era um jogador do Guarani Futebol Clube chamado Banana. Apelido Banana, pois acredito que ele deveria ter um nome normal como Sérgio Wanderlei ou Márcio Roberto. Pois naquele ano o Guarani estava na crista da onda e o Banana estava deslumbradão e pimpão com a possibilidade de “make it big”, ganhar muitos milhares de Cruzeiros, ficar famoso, sair na capa da revista Contigo. Enquanto eu cozinhava minhas gororobas destinadas ao lixo, as papinhas do Gabriel ou lavava as louçinhas, ouvia o Banana bradar lá do outro lado do edifício, pra mulher dele que cozinhava, o que ele iria fazer com a grana que estava entrando. Abraçava a mulher, olhando de soslaio pra ver se eu estava ali na minha cozinha para poder ouví-lo—MULHER, PREPARE-SE POIS VOU TE COMPRAR UM ANEL DE DIAMANTES! Um diamante é para sempre, mas a onda de sorte e prosperidade do Guarani e do Banana não parece ter durado muito.

14 comentários em “minha cozinha social”

  1. Pois é Fer, como te disse começo lendo o post atual e vou lendo, vou lendo de acordo com o que o site sugere e acabei neste post que me fez rir muito da forma como vc descreveu a história do Banana. Bom, eu gosto muito de futebol e o time do Guarani dessa época realmente estava na crista da onda, eu já morava em Campinas e fui a alguns jogos (sim, meu passado me condena). Me deu uma saudade de Campinas, ou das coisas que vivi à época, aquela nostalgia rondante e aí vamos pra internet né. E olha o que eu achei, o seu vizinho da época…. http://terceirotempo.bol.uol.com.br/que-fim-levou/ernani-ou-hernani-banana-6034
    Beijão, é muita inspiração passear pelo Chucrute.

    R: Ana, essa história é pra rir mesmo, nunca esqueci do vizinho Banana! obrigada pelo link, nunca imaginei que futuro ele teria. espero que esteja bem de vida. um beijo!

  2. Fernanda, não tenho muito trato (ainda…) com este canal de comunicação, portanto não possuo blog (vou aprender como viabilizar). Descobri o seu por acaso; na verdade nem sei como aportei nele. Sempre gostei de suas fotos,da maneira pitoresca como aborda o seu cotidiano…enfim, aprecio muito acompanhar seus relatos e imagens; me divertem também os comentários postados. Mas o que me leva a entrar em contato é para dizer-lhe da minha emoção em achar em sua despensa, na prateleira de 2010(novembro), uma foto muito especial: entre glamurosas farinhas de tapioca, jatobá, etc´,lá está “farinha de mandioca de Jacupiranga -SP -out/10”. Sou mato bravo desse chão, uma cidadezinha deliciosa do Vale do Ribeira, transito pelos mandiocais e conheço as pessoas que fabricaram essa farinha (possivelmente adquirida nos stands de um evento “Revelando São Paulo” do qual anualmente participamos).Fiquei orgulhoso e precisava falar.

  3. vou mandar uma receita de peixe:
    começamos, 1 xicara de caldoo de limao
    1 colher de sal
    3 cenouras e batatas picadas ou redondas
    e a final coloque ao forno deixe apenas 40 minutos

  4. Teu blog é delicioso. Literalmente.
    Adorei o texto e, fora o fato do filho que ainda não tenho, me identidiquei demais com toda descrição, do piso ferrugem, às tentativas do feijão. Da jovem casada, da pia baixa… e da chaleira queimada!

  5. Pena que o texto acabou!
    Lindo! Me transportou ao local,à época e me imaginei em minha juventude, em minha cozinha, em circunstâncias semelhantes. Também derreti mamadeira e às vezes ela ainda me vem à memória. Seu texto dá vontade de “ouvir mais” e assim me sentir como outras pessoas. Me passa a sensação de conhecê-la a tempos. Linda sua sua forma de escrever. Parabéns
    GRANDE ABRAÇO

  6. Qual o por quê dessa nostalgia gastronômica, Sra. Pessoa não tão jovem casada com filho crescido?
    Muito bem escritas as suas memórias!

  7. Nossa … que delícia de história! Fiquei com gosto de quero mais, de saber sobre as suas outras cozinhas. =)
    Identifiquei-me bastante com alguns momentos, com as tentativas que viraram lixo e com a maternidade – miha filha tem 3 anos.
    Nostalgia … da época em que morava no Brasil e a cozinha era um corredor, daquela sensação de segurança que se tem ou sente quando estamos perto dos que amamos.
    Um beijo!

  8. Obrigada, Fernanda. Eu estava lá, nessa cozinha de chão cor de ferrugem, com você, a ouvir o banana a bradar… Adoro como você conta as coisas… 🙂
    Um beijão.

  9. Fer, viajo nas suas histórias, fico Tentando imaginar tudo…
    Lembro ainda do primeiro jogo de cozinha da minha mãe, todos azul piscina, nunca me esquecerei daquele fogãozinho azul… Na época era interessante!!! Comecei ajudar na cozinha aos meus 8 anos de idade, e me lembro muito bem das primeiras panelas que tentei fazê-las brilhar até que se tornassem uns espelhos para mim. Ao terminar de lavá-las, e muito empolgada, apenas olhava para minha barriga, aquela blusinha branca, toda suja de espuma de sabão, misturada aos resíduos do alumínio, cor cinza… Hoje só saudade…

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