Não bastava ser uma segundona, eu ter acordado com a escuridão ainda presente, o Uriel estar viajando e eu ter esquecido de comprar pão. O Misty precisou vomitar toda a comida de salmão que ele devorou no breakfast pelo corredor, pelos tapetes e carpete. E eu ainda precisei pisar sem querer no vômito e carimbar outras partes do carpete e tapetes com a meleca. Também não foi suficiente o mau humor usual, mas eu tive que subestimar a chuva e pensar que dava pra pedalar segurando o guarda-chuva. E não deu. Gastei minutos preciosos correndo pelo quarto, trocando de roupa freneticamente como eu sempre faço e saí atrasada, enfrentando a chuva e o percurso até o trabalho à pé, correndo contra o tempo, treinando disfarçar a cara de bunda de quem chega depois da hora.
Não bastava ser uma segundona e todo o resto que aconteceu, mas eu tinha que cometer um erro de escolha na hora de me vestir e assim me auto infligir o miserê de passar o resto do dia com um visual fug. Sem brincadeira, se eu vier trabalhar enrolada num saco vazio de arroz basmati tailandês, ninguém no meu circulo diário vai dar um suspiro, quanto menos se importar. Mas eu me debato com o maldito dilema fashion todo santo dia. Me visto visando o conforto, já que vou ficar sentada por oito horas, com algumas levantadas e caminhadas necessárias. Não preciso me vestir de maneira específica, meu trabalho não impõe nenhum código de vestimenta, não preciso usar terninho, nem sapato social, posso ir trabalhar vestida de camiseta, bermuda e chinelo de dedo e talvez seja isso que me estimule a fazer tanta besteira. Por exemplo, ninguém dever ter entendido o que eu estava fazendo de vestido longo estampado no dia que a tempestade do tufão japonês nos castigou. Já para essa fatídica segundona escolhi uma tunica fofa de florezinhas verdes e manga comprida com camiseta cinza por baixo, colete beige por cima, echarpe longa marrom, bermuda levemente balonê de veludo cotelê verde. Até aqui tudo estava bem. Entornei o caldo quando decidi vestir uma meia beige até o joelho e tênis de alpinista. Parece até que eu não tenho espelho em casa. E de castigo, passei o dia achando que todo mundo com quem eu cruzava estava rindo de mim. Se existisse um what i wore today—the clown version, eu poderia certamente participar com sucesso.
Vestida assim, passei o dia camelando e segurando o guarda-chuva, pra lá e pra cá. Resolvi pegar uns livros na biblioteca. Fui e voltei, fui e voltei, porque da primeira vez esqueci minha carteirinha da universidade. Voltei carregando livrões pesados sob a chove chuva. Me atrasei na volta para casa no final do expediente e segunda, vocês sabem, é dia de buscar a cesta orgânica. Na correria pra mandar uma mensagem pra Marianne avisando que estava atrasada, esqueci de trancar a porta da frente da casa e saí pela garagem. Só notei que minha casa ficou aberta, quando fui abrir a porta pra Marianne. As verduras e legumes chegaram mais imundos que o normal, por causa da chuva. Felizmente consegui convencer a Marianne a levar a mega acelga, pois eu ainda tenho uma inteira na geladeira. Lava lava, lava lava, gatos impedindo o meu livre trânsito na cozinha, lembrei que ainda tinha que trocar a roupa de cama e banho e limpar o vômito do Misty no andar de cima, que nessa altura já estava uma crosta ressecada.
Minha maratona dessa segundona chuvosa merecia um prêmio. Quando tenho dias complicados, quero comer algo que me deixe absolutamente feliz. E esse algo é sempre macarrão alho e óleo. Fiz a minha receita básica, usando um espaguete de farro italiano, bastante alho micro picadinho, três filezinhos de aliche bem picadinho refogados em bastante azeite e MUITA, MUITA, MUITA salsinha fresca picada. Pimenta moída na hora, bastante queijo parmesão ralado bem fininho na hora de servir, uma taça de vinho e uma salada de tomate para acompanhar, voilá! Comi bastante e fiquei feliz. Fiz ainda muitas outras coisas depois do meu jantar solitário e fui deitar me sentindo absurdamente cansada. Ninguém duvida que qualquer dia corrido cansa, mas um dia assim, como essa segundona, cansa muito mais.