minha religião é a música

Meu primeiro encontro com o Gospel — em Sacramento, maio de 2001.

Etta James, Nina Simone, Aretha Franklin, Sarah Vaughan, Morgana King, Billie Holiday, Mahalia Jackson, Ella Fitzgerald, Shirley Horn, Anita O’Day, Sharon Jones, Dinah Washington, Carmem Macrae, Ma Rainey, Bessie Smith, Whitney Houston, Tina Turner, Gladys Knight, Diana Ross, Martha Reeves, Janet Jackson, Rose Hemphill, Bessie Jones, Deborah Coleman, Koko, Taylor, Ida Cox, Alberta Hunter, Margaret Johnson, Trixie Smith, Memphis Minnie, Macy Gray, Missy Elliott, Me’Shell NdegeOcello, Tracy Chapman, Lil’ Kim, Lauryn Hill, Eve, Mary J. Blige, Cassandra Wilson, Sade, Queen Latifah.

Quem já não viu filmes onde os negros norte-americanos cantam numa igreja? As mulheres com vozeirões potentes entoam palavras de louvor ao Senhor no coro; o pastor grita e gesticula para espantar o demônio e trazer a palavra de Deus aos seus párocos; homens, mulheres e crianças cantam, dançando com as mãos levantadas e espalmadas, dizendo palavras de concordância e contentamento.

Perdi as contas de quantas vezes vi essas cenas em telas de cinema e tv. A última vez foi umas semanas atrás, quando revi o clássico The Blues Brothers, e mais uma vez me encantei com a cena musical na igreja: o coro de mulheres e James Brown de pastor comandando a sessão de canto e dança dos fiéis, que culmina com Jake Blues [John Belushi] tendo uma epifania, envolto em luz, dançando e cantando com o resto dos negros na igreja.
Eu sou amante do Blues, a música do demônio, dos marginais, dos bêbados, drogados, do sexo, da dor de cotovelo, enfim, o oposto do que é cantado nas igrejas. O Blues e o Gospel não se misturam. Quem canta Gospel normalmente não canta Blues. Dois estilos tão antagônicos—onde um glorifica o Senhor e o outro faz pactos com o diabo—mas ao mesmo tempo tão similares na maneira gutural como a música é cantada, vinda da alma, em transe, em êxtase.

Minha longa experiência com o Blues tem sido gratificante, mas eu ainda não tinha tido a oportunidade de ouvir o Gospel na fonte, onde ele é mais genuíno e autêntico: na igreja. O meu dia finalmente chegou quando eu li no jornal que a Igreja Batista do Novo Testamento de North Highlands [uma das inúmeras cidades pertencentes à grande Sacramento] iria ter um concerto de Gospel aberto ao público, para celebrar o ‘Women in White Workshop Choir’. Eu não tinha a menor idéia do que iria encontrar lá, mas estava decidida a ter finalmente a minha vivência da música negra sagrada de culto e devoção.

Era uma igreja pequena, na esquina de uma avenida numa área isolada. Quando chegamos, muitas mulheres vestidas de branco já estavam esperando na porta de entrada. Todas negras, sorridentes, perfumadas, alegres, em alvoroço, se preparando para entrar. Fomos procurar um lugar para sentar, meio tímidos, sorrindo também e uma senhora nos recebeu na porta, nos deu as boas-vindas e o programa da cerimônia. Fomos sentar na frente, na terceira fileira de bancos de madeira, porque eu queria ver, ouvir e fotografar tudinho, cada movimento, cada som, cada dó, ré, mi, sol…

O coral era composto por mais de 120 mulheres, com idades variando entre 5 e 75 anos, todas vestidas de branco. Quando os músicos [piano, órgão, bateria, baixo e saxofone] começaram a tocar os primeiros acordes da música inicial, elas começaram a entrar na igreja vindas da porta principal, que emoldurava o grupo numa luz brilhante de final de tarde. Elas entraram dançando em movimentos ritmados, pra lá e pra cá, e a partir daquele momento eu não consegui mais me achar ali naquele banco de madeira, tentando segurar a câmera e ao mesmo tempo disfarçar os borbulhões de lágrimas que rolavam descontroladamente pelo meu rosto. Fiquei tão emocionada que tremi todas as fotos. As mulheres mexiam os braços, erguiam as mãos pro céu e dançavam suavemente ao ritmo da música, cada uma achando o seu lugar no mundaréu de cadeiras arranjadas no fundo do altar da pequena igreja. Quando todas estavam em seus lugares, cento e tantas vozes potentes se soltaram num único som, cantando juntas ‘He Made The Difference’.

Na igreja lotada fizemos a social com nossa vizinha de banco, que depois das apresentações perguntou à qual igreja pertencíamos. Balbuciamos algo confuso, pois na verdade não pertencemos à nenhuma igreja. Os vizinhos do banco de trás, dois casais nos seus 70 anos, comentavam sobre o último jogo do Sacramento Kings, o time de basquete da cidade. A celebração durou três horas, com muita música, palavras de louvor e até a benção do pastor, que chamou todos para pedir ou somente agradecer graças recebidas e os que foram ganharam uma oração, enquanto o resto gritava ‘Amem!”, ‘Alleluia!’, ‘Praise the Lord!’, ‘God is Mercy!‘, entre inúmeras outras exclamações de alegria e louvor.

As mulheres cantaram como divas, no coro e em solo. Algumas deveriam estar gravando discos e tirando lucro do seu enorme talento, mas ao invés disso elas escolheram dedicar suas vozes à igreja. Mulheres lindas, com sorrisos enormes, jovens, maduras, casadas, solteiras, todas negras, todas me emocionando às lágrimas e me deixando com uma sensação imensa de paz e alegria. Comentamos sobre todas as mulheres, famosas ou não, que cresceram cantando e ouvindo o Gospel nas igrejas onde as mães, tias, avós, irmãs, amigas, vizinhas também cantavam. Na saída, o senhor do banco de trás pegou na minha mão e deu tapinhas no meu braço enquanto dizia ‘beautiful! you’re beautiful!’. Confraternizamos com alguns dos fiéis, enquanto procurávamos um banheiro e alguém nos disse ‘come back next year!’. Respondemos que com certeza voltaríamos. No espelho do banheiro, não vi onde estava a boniteza naquela cara desgastada, com os olhos inchados, que ardiam de tanto chororô desopilador. Mas o coração batia feliz, e eu suspirava de alegria e prazer, pois tinha finalmente experienciado o Gospel!

**Regressamos nos dois anos seguintes, participando de algumas celebrações e até de algumas missas. Paramos de ir à igrejinha de North Highlands quando numa das missas o pastor declarou enfático que ele gostaria que as pessoas estivessem ali por causa de Jesus e não somente por causa da música. Vesti a carapuça. O pastor estava certo. A igreja abriga aos que ali vão para expressar sua fé e louvar o Senhor. E eu só estava lá mesmo pela música, que é a única religião que eu sigo.

19 comentários em “minha religião é a música”

  1. Tua sinceridade me emocionou muito… mas contin ue indo à Igreja, mesmo que seja pra ouvir (também) as músicas. FER, Amei conhecer VC!!! KALL.

  2. por favor querida….amei teu texto….mais me manda os nomes destes filmes de igrejas e vozes e cantos por favor….!!!!! ti amo e amei de paixão….o mais rapido possivel

  3. Apesar do que o pastor disse, faça um favor a você mesma: continue indo ouvir tais músicas e deixe que elas falem ao seu coração. Quem sabe um dia…

  4. Emocionante hein! Eu ADORARIA ver uma coisa dessas! Eu sou evangélica na verdade, aqui no Brasil tem coisas parecidas…mas a voz dessas negras não têm comparação! Deve ser lindo! Vou procurar ver isso qdo for ps Eua! Bjaoo!

  5. Olá Fer!
    Adorei seu texto… parecia que eu estava lá com você… sentindo todas as mesmas emoções que você sentiu… e claro chorei também… eheheheh um choro bom né???Sou apaixodnada por esse filmes americanos com essa igrejas e esses coros maravilhosos. Será que é pedir demais, você me indicar alguns, já que você também adora esses filmes? A bíblia diz que Jesus habita no meio dos louvores, deve por isso que nos sentimos tão bem diante de músicas como essas… Um grande beijo pra voc~e com muito carinho
    Telma

  6. Eu também sou muito sensível com música.
    Quando tocava violino, me arrepiava ao ouvir as músicas que estava tocando.
    Também tenho vontade de ver um coral desses, que deve conter uma energia enorme, e deixar a gente com o coração limpo limpo… e leve. Daria tudo por uma sensação dessa agora.
    Mas coloca as fotos sim pra gente ver. Porque mesmo tremida, com certeza vai passar alguma emoção pra gente 🙂

  7. Eu adoro as vozes fortes tanto dos blues como do gospel.
    Assisti a um concerto de um coral americano de gospel na casa da música aqui no Porto absolutamente divino! Quanto aos blues deliciei-me mesmo nas tocas escuras de Chicago e vim fã incondicional e hipnotizada!
    Assim, numa igreja, nunca assisti a não ser em filme e deve ser uma experiência fantástica.

  8. Concordo…. quero fotos mesmo que tremidas….
    lindo texto, tao verdadeiro!
    R: as fotos estao no fundo de algum baú, e nem sei qual deles… ;-)]

  9. Poucas coisas exercem sobre mim tamanho poder como a música. E a voz das negras americanas é algo arrebatador mesmo. Acho que não há nada igual no mundo. Sou fascinada pelas cantoras brasileiras, Elizeth, Elis, Nana e tantas outras. Mas o que as vozes de Ella Fitzgerald, Billie Holiday, Sarah Vaughan, Dinah Washington provocam em mim é algo que transcende a própria música.

  10. Tive uma experiência semelhante em New York há muitos anos. Não eram mais de 100 vozes, mas chorei o tempo todo mesmo assim. É de arrepiar!!!!!
    beijos

  11. Eu me comovo muito mais com a música do que com a religião.Me lembro de ter me emocionado e muito ao escutar um coral Gospel interpretando HAPPY DAY, e olha que nem era in loco, era pelo Cd mesmo.A música tem linguagem própria e universal e deve ser livre de imposições.
    Um feliz final de domingo, de Páscoa…

  12. Emocionante, Fer. Fui lendo e me derretendo, imaginando a cena. Tenho certeza que tambem teria me debulhado em lagrimas… Beijos pra voce e um especial pro Roux e pro Misty!

  13. Oi Fer,
    Acredito que, se estivesse no seu lugar, também teria chorado cântaros, porque há coisas que nos tocam na alma.
    Também não posso dizer que sigo uma religião, mas tenho o meu modo de acreditar em Deus.
    Com ou sem religião, desejo uma feliz Páscoa, no sentido do renascimento diário, da curiosidade infantil de ver tudo como se fosse a primeira vez, pois a vida assim fica mais bonita.
    Um beijo (ainda do Rio)

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