uma horta conceitual

Minha vizinhança é quase homogênea em termos de status profissional dos proprietários das trinta casas coloridas que formam o círculo batizado de Aggie Village. A maioria dos meus vizinhos são professores da UC Davis. A real ocupação de um deles—o da casa do nosso lado da calçada, na esquina que desemboca para o Arboretum—foi no inicio uma incógnita. Nós víamos a mulher sair pela manhã, provavelmente para ir trabalhar, mas o marido ficava por lá, cavando uns buracos, arrancando uns matos e carregando umas pedras que ele amontoava aqui e ali. Concluímos pela aparência da coisa que a mulher devia ser professora e que o cara devia estar desempregado e por isso fazia penitência da vida ociosa trabalhando em reformas necessárias na casa. A varanda desses vizinhos estava sempre cheia de cacarecos, cadeiras, vasos, pedras, bicicletas e até uns quadrados de feno. A cerca tinha sido derrubada, deixando à mostra uma paisagem desolada, sem grama, sem flores, só um imenso terreno desnudo.

Não demorou muito para descobrirmos que o nosso vizinho carregador de pedras e fazedor de buracos não estava desempregado, muito pelo contrário. Estava muito bem empregado como professor do departamento de artes da Universidade da Califórnia.

Descobrimos também que a casa dele não estava passando por nenhuma reforma. Ela é na verdade o palco para uma constante e dinâmica instalação de arte conceitual, que eu ainda não pesquei o significado, apesar de ter certeza absoluta de que há um, ou vários.
Com o passar dos anos pude perceber claramente que meu vizinho é obcecado por pedras. Há centenas delas, empilhadas ou espalhadas, ao redor da casa. No último verão ele fez uma pilha em formato triangular debaixo de uma árvore, que me fazia pensar naqueles altares que se vê em estradas, para relembrar as pessoas que foram atropeladas. Mas as instalações com pedras não permanecem, pois logo as pedras somem, são relocadas e reaparecem em outra forma, num outro canto.

Embora tudo na casa do meu vizinho seja interessante, o mais peculiar é realmente o seu trabalho de jardinagem. O quintal não tem cerca, então quando caminho pela calçada ao lado posso ver claramente o imenso poeirão, com estradinhas desenhadas com pedras [claro!] e às vezes uns panos brancos imensos pendurados em arames estendidos e cruzados pelo espaço do terrão. Uma vez vi cadeiras num arranjo íntimo, para logo em seguida presenciar o vizinho com a esposa e um amigo bebendo chá, sentados no meio do jardim árido de terra e pedras. No quintal não tem nenhuma planta. Mas ao redor da casa, numa espécie de barranco, o vizinho planta uma horta. E expande a plantação para uma área comum, que separa a nossa vila do caminho das bicicletas do Arboretum. Ali, num espaço de uns 10 X 200 metros, o vizinho planta flores—california poppies e girassóis—e legumes e verduras—milho, abóbora, pimentões, berinjelas, tomates.

Todo ano o jardim que ele planta, no barranco que circunda a casa e no canteiro separatório, vira um horrível matagal. As plantas crescem alucinadamente e se espalham pela calçada. Muitas vezes no final do verão, já não é possível caminhar por ali e temos que dar uma volta para evitar ter que desbravar a selva. Nunca entendi muito bem o propósito daquilo, até que o Uriel ficou sabendo pelo próprio vizinho, que a horta que ele planta anualmente é comunitária, para qualquer um pegar o que quiser. Pelo jeito ele não divulgou muito bem a mensagem, pois nunca vi ninguém pegando nada. O que acontece todo ano é um grande e escandaloso exercício de desperdício.

Noutro dia emergi no morro, vinda de uma caminhada pelo Arboretum, para uma visão do vizinho numa reinterpretação californiana do guru indiano dos Beatles. Vestido numa túnica longa e calças cor-de-rosa, ostentando óculos escuros, com o cabelo desgrenhado e grisalho preso num rabo de cavalo e a barba branca longuíssima apontando em direção ao sol poente, ele regava caprichosamente o vasto canteiro, que já tinha sido limpo, redecorado com pedras [claro!] e a terra preparada para o plantio. O caso é que só vamos saber o que o vizinho decidiu plantar daqui a alguns meses. Se bem que ele avisou, no dia que contou que a horta era self-service, que também aceita pedidos e plantaria o que você quisesse colher: pepinos, batatas, melancias, beterraba, morangos? Arriscaríamos, pois então, pedindo, quem sabe, se fosse possível ele plantar umas mandiocas, uns chuchus e um pé de maracujá?

16 comentários em “uma horta conceitual”

  1. Realmente lindo, um artista ostentoso, generoso e ao mesmo tempo tímido…Lógico que seu jeito de escrever, Fer, nos dá a impressão de estarmos lá observando junto…as pedras, o matagal entremeado de legumes…Bom você contou o milagre ( muito bem contado por sinal) mas não mostrou o santo…que tal bater umas fotinhos? Daquelas tão especiais que só vc saber bater, Hein? Hein?
    Ah e de sugestão, faz umas receitinhas bem gostosinhas, q. vc tão lindamente apresenta pra nós, com os legumes da “Surpresa Horta Comunitária” e leva pro”bom maluco beleza”, agradece ele, por nós, por fazer sua parte e espalhar o bem, de maneira tão linda em forma de alimentos, sem escolher a quem. Sabe que sou viciada em suas historietas? Beijokas…

  2. bhá tu então tens que conhecer o meu querido véio, às vezes, chega um menino, dois, perguntanto se o diamante já brotou… ou ainda se o pé de flauta já deu flautinhas ???
    eu hein!? num sei o que meu querido conta de histórias por ai, mas pela curiosidade da garotada fica evidente que ele se diverte!
    minha oficina é bem de frente pra rua, eu vejo tudo, mas ninguém me vê, daí que é muito divertido ficar olhando a caras dos curiosos olhando pra esculturas no jardim, pra meus pânos de tear pendurados em árvores, pras telas pintadas secando no varal, pro entra e saí de alunos de todas as idades que passam por aqui….
    ô, de fora pra dentro, a gente realmente num é normal!
    (deu uns panes no envio do mentário, se tiver mais de 2 deleta tá?)
    abraços!

  3. Eu adoro vizinho cabeça, melhor que vizinho reclamão, né?
    uma das coisa que sinto falta da Califórnia é que as pessoas são de maneira geral simpáticas e tem esse espirito natureba-comunitário.
    Que bom.

  4. Também adoraria ter maracujà por perto. Moro na Italia e aqui nao encontro em lugar nenhum. Consegui algumas sementes que minha mae me mandou do Brasil, mas nao sei como cultivà-las, nem quando começar… Serà que seu vizinho arteiro (ou seria horteiro.. hihihihi)sabe??
    Beijo.

  5. Adoro ler seus posts Fer, voce escreve de uma maneira muito bacana, me divirto!
    Legal esse seu vizinho figura, imagino q ele seja assunto p/ altos papos entre os outros da vizinhanca nao?! rs!
    Beijos!
    Ana
    R: obrigada, Ana! eh verdade, alguns vizinhos acham ele meio pancada, mas eh um pancada com boas intençoes! 🙂 beijos, Fer

  6. Fer, já fiz todo um filme na minha cabeça acerca desse artista he he Diverti-me imenso a ler este teu relato da vizinhança.
    R: nem fala… eu ainda dou risada qdo lembro dele vestido de cor-de-rosa, regando o canteiro.. 🙂

  7. Fer,estou trocando meus vizinhos todos( o mais jovem tem 75) por este daí.Nada contra os velhos que também já estou a caminho mas fui premiada com vizinhos reclamões e rabujentos,acho que está fazendo falta um maluco beleza pela vizinhança,e ainda de gruja,poder colher uns legumes e hortaliças,tá ótimo!!beijo!
    R: Mariângela, felizmente quase todos os meus vizinhos sao legais, se bem que nao conheco todo mundo. esta nova safra eu to pensando em aproveitar! 😉 beijo, Fer

  8. Gostei muito da descrição do vizinho excentrico, fica até meio divertido para os moradores. Imagino que o lugar onde você mora deva ser lindo, e da próxima vez quando as hortaliças do vizinho estiverem maduras aproveite e colha quem sabe depois ele vá pedir sua opinião sobre o que plantar na próxima vez, que tal? Eu moro aqui próximo de Campinas também em um condominio onde muitos plantam e é um troca, troca entre vizinhos é muito engraçado. Acabei de receber uma sacola cheia de carambolas doces e amarelas. Já fui várias vezes à California, gosto muito, principalmente das cidades pequeninhas ao longo do trajeto da costa entre SFrancisco e LA. Abraços e obrigada por nos dar a oportunidade de ver e aprender tanta coisa legal de suas viagens e experiências na cozinha.
    R: Ani, acho que vou comecar a usufruir da plantacao, sim. acho uma pena os legumes apodrecendo … A California eh muito ecletica e por isso tao charmosa. beijao, Fer

  9. Olá Fernanda,
    Fico imaginando como é ser casada com uma pessoa assim tão diferente! a casa dele é aberta ao público e pode-se escolher o que se quizer que ele planta? grande exemplo de desprendimento.
    você continua ótima de narração.Adooorei!
    bjus
    Leo
    R: Leo, a horta fica fora da casa, na rua. ninguem entra na casa dele, ai dai ja seria demais, neh? beijao! 🙂 Fer

  10. O cara e’ uma mala sem alca, isso sim! O pessoal do seu bairro e’ muito bonzinho, em outros lugares ja’ teriam colocado uma acao obrigando-o a arrumar melhor o jardim dele… : )
    R: um outro vizinho ja reclamou dele pra mim, mas eu acho ele engracado. talvez comece a colher os frutos da horta coletiva neste ano. 🙂 beijo, Fer

  11. Fer , infelismente eu não conheço a California ( diga-se de passagem que não por falta de vontade e sim de oportunidade ) mas meu marido já esteve por estes ares ha alguns anos , e realmente ele pôde ver e conhecer algumas “figuras “, algumas bem exentricas mas sempre bem humoradas , pelo visto o que não falta por aí são pessoas de bem com a vida!
    Meu marido ficou encantado , contou que a região é deliciosa além de linda , tenho muita vontade de ir conhecer também ! Quem sabe um dia !
    Grande beijo
    R: Silvia, venha sim quando puder, voce vai adorar! beijo, Fer

  12. no fim fiquei meio sem entender se vc acha que o homem é maluco ou excêntrico – tem diferença?
    bj
    R: excentrico e divertido. sem ele, minha vizinhança nao seria a mesma. ha outras historias com ele de protagonista. bjs! Fer

  13. Fer,
    Estive na Califórnia em setembro do ano passado e simplesmente amei! Fui bem recebida, bem tratada e nunca me senti tão à vontade em cidade alguma! Moro no Rio e aqui as pessoas e principalmente os vizinhos, são mal educados e mal humorados. Que bom que você mora em um ambiente assim! Leio sempre os seus blogs e é a primeira vez que comento.
    bjs
    Dani
    R: eh verdade, Dani, as pessoas aqui sao super simpaticas, eu adoro o estilo de vida daqui. que bom que vc comentou e me contou isso! beijao, Fer

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