tarde molhada com leite quente

Tem chovido muito por aqui nos últimos dias, fato que foi considerado a salvação da lavoura, pois já tinha sido anunciado que estávamos passando por uma das piores secas da história deste estado. Chuva é bom pra agricultura e também pras estações de esqui, que precisam dessa água, que lá cai modificada em forma de neve.
Eu reclamo um pouco quando chove, pois meu meio de locomoção diário é a bicicleta. Fico na expectativa de que não esteja chovendo quando vou pedalar—de manhã cedo, na hora do almoço ida e volta e à tardezinha. Mas nem sempre dou sorte. Se a chuva não estiver muito densa, enfrento os respingos somente com o casacão impermeável e a touca de couro. Mas quando a chuva fica mais pesada, aprendi a segurar o meu guarda-chuvão bem próximo à cabeça e vou pedalando numa esforçada concentração, pois equilibrio não é meu ponto forte. Uma mão segurando o guarda-chuva imenso e a outra o guidão, pedalando devagar e com cuidado, até que vou bem e me safo da chuva sem precisar camelar.
Mas outro dia eu subestimei os respingos, que no meio do caminho se transformaram rapidamente num aguaceiro, e mesmo com o super casacão e o hiper guarda-chuvão, cheguei no trabalho com as duas pernas da calça ensopadas, de pingar. Achei que o dia estava perdido, que teria que tirar a tarde de folga e voltar para casa pra poder me esquentar no chuveiro, depois debaixo das cobertas. Mas ando realmente atolada de coisas pra fazer e não posso me dar ao luxo de perder uma tarde de trabalho só por causa de uma chuva. Justamente naquele dia, sabe-se lá bem porque, resolvi desencavar uma pequena garrafa térmica vermelha do fundo do armário e enche-la de leite quente adoçado com maple syrup, que acabou salvando a minha tarde. Uma das secretárias me emprestou um aquecedor portátil, que me secou em menos de quinze minutos, e enquanto bebia o leite quentinho fiquei me sentindo agasalhada por um cobertor de conforto.

era uma vez um bom japa

Era nosso restaurante japonês favorito aqui em Davis. E como tem restaurante japonês aqui em Davis! Mas esse era caprichado, um lugarzinho pequeno, dois sushi men, um cozinheiro mal humorado, a gerente e as mocinhas garçonetes, todas asiáticas, todas vestidas de cor-de-rosa, todas chamando a gente de ‘guys‘ e fazendo os salamaleques na entrada e na saída. O serviço era meio desorganizado, talvez devido ao mau humor do cozinheiro e à imaturidade das meninas garçonetes, então às vezes a entrada chegava depois do prato principal, mas tudo bem, a gente nem ligava e pedia sempre a mesma coisa—o Uriel um prato com peixe e eu um sushi de camarão com lagosta, mais a sopa de missô, a salada de pepino e o tofu frito, que dividíamos.

Mas num fatídico dia o Uriel resolveu pedir sushi. E vocês não sabem dessa praga carmica, mas coisas estranhas se materializam no prato dele, sempre no dele—pelo de animal, cabelão afro ou loiro, cascas, insetos, objetos alienígenas de todos os tamanhos, cores e aspectos. Dá até raiva. Ele faz aquela cara e você já sabe, ele achou algo. E nesse dia ele fez uma cara torta de quem mastigou algo estranho, daí cuspiu discretamente os mastigados do sushi no cantinho do prato e eu já revirei os olhos pensando lá vem coisa, e era uma pedra. Uma pedra dentro do sushi.

Chamamos a gerente e mostramos a pedra. A reação dela foi o que mais nos surpreendeu, muito mais do que achar a pedra dentro do sushi. Ela disse—ah, desculpa, é uma pedra, é do arroz, desculpa às vezes acontece. se tivessemos visto, teríamos tirado, desculpa mas acontece, às vezes acontece de ter uma pedra no arroz.

ACONTECE? Às vezes ACONTECE?

O nosso japa favorito virou história. Depois de tantos anos frequentando o lugar assíduamente não poderemos voltar mais lá, infelizmente, porque se acontece de ter pedra no arroz, não dá mais pra confiar, né?

Aprende-se, sempre

O que eu realmente gosto no meu cotidiano culinário é saber que há sempre algo novo para se conhecer. Sabores, texturas, ingredientes, maneiras de preparar, misturas, técnicas. Os horizontes estão abertos à novas tendências, experimentos e criatividade. Posso confirmar que estou sempre aprendendo e acho isso tri-bacana, pois a culinária não é nem nunca vai ser uma caixa fechada, com tradicionalismos inalteráveis, idéias impassíveis, verdades fixas e absolutas.
Por isso ainda não perdi totalmente o entusiasmo com as minhas desventuras na cozinha e adoro quando tenho algo novo para colocar em prática. E a novidade desta semana foi o caldo com a fibra e sementes da abóbora, que aprendi com a mestra Deborah Madison. Ela ensina a usar o interior da abóbora, aquela parte fibrosa, e as sementes—que eu sinceramente não tenho a menor paciência de torrar e aproveitar.

Abri uma abóbora red kuri ao meio, as fibras e sementes foram para uma panela, junto com algumas folhas de verdura verde, uns dentes de allho, pimenta preta e juniper e bastante água. Virou um caldo, que depois de ferver, ferver, foi coado e usado numa sopinha singela com macarrãozinho orzo.

E a abóbora foi pro forno cortada em cubinhos e depois de assada foi temperada com suco de limão, sal rosa do Himalaia, bastante azeite prensado com limão e salpicada com folhinhas frescas e aromáticas de manjericão, que estão crescendo na estufa da fazenda e foi nosso treat na cesta orgânica da semana. Essa foi a melhor salada de abóbora que já comi em muitos ano. Foi servida morna no jantar e o restinho que sobrou foi o meu almoço frio no dia seguinte.

sai dessa cozinha que não te pertence!

No inicio parecia que aquele cheiro chato e insistente na cozinha era resquício da fritura dos filés de frango. Mas depois de fumegar por horas um panelão cheio de cascas de laranja, cascas de mexerica, paus de canela, cravos e estrelas de anis, achando que tivesse dado cabo da fedentina, percebi que nada tinha mudado. Veio o pessoal da limpeza e mesmo podendo sentir um cheirinho deliciosamente bom pela casa, na cozinha eu ainda podia identificar claramente, camuflado sobre a nuvem de desinfetante de lavanda, aquele cheiro horrível de sei lá o que.
E todos os dias, quando eu descia as escadas em direção à cozinha e cheirava aquele cheiro, me angustiava pensando em como foi que eu tinha conseguido deixar minha cozinha assim tão fedorenta. E procurei por eventuais restos de cebola caidos acidentalmente em algum canto obscuro, ou um pé de couve por ventura podre dentro da geladeira, ou outra coisa qualquer fora de lugar. Como não achava nada, fui ficando frustrada, frustrada, frustrada….
Até que caiu a ficha e resolvi cheirar a travessa de alho que mantenho sempre em cima da pia, ao lado da geladeira. Na mesma semana que eu fiz o frango frito, chegou um alhão roxo gigante na cesta orgânica. O culpado só poderia ser o alho, veterano de outros delitos olfativos e atentados contra os odores de boa índole. Funguei, funguei e como não pude ter certeza, decidi fazer um teste. Removi a travessa de alho para a lavanderia. E o cheiro estranho na cozinha SUMIU completamente. Ou melhor, mudou de lugar. Fedia agora o outro espaço.
O responsável pelo futum misterioso era mesmo o alhão roxo e orgânico, minha gente. Agora entendi muito bem porque alho espanta até vampiro!

o último suspiro [do atum]

Ando cansada de dizer que ando cansada, mas realmente o que eu tenho sentido não é bem um cansaço, mas uma exaustão. E tem dias que ela ataca forte, me deixando mal humorada e sem muita destreza física e mental. Depois das festas, meu maior objetivo é conseguir limpar e esvaziar a geladeira de ingredientes que sobraram das grandes comilanças. Como tive visitas durante e depois das comemorações, precisei dobrar a quantidade de ingredientes e sempre sobra um pouco aqui, outro ali.

Durante um desses meus ataques de exaustão, resolvi fazer aquela mais do que batida e super flexível e variável salada niçoice. Usei floretes de brócolis cozidos no vapor e palitinhos de cenouras coloridas, que fez os olhinhos da minha sobrinha brilharem. Cobri tudo com aquela maionese de alho que faço com gema cozida, e dessa vez usei as raspas e suco do limão cravo, que é o meu favorito e que colho na árvore de ninguém. Cozinhei uns ovos e abri duas latas de um atum italiano conservado no azeite, que temperei com salsinha picada e reguei com o mais fabuloso azeite prensado com limas da Pérsia. Esse foi o nosso jantar, acompanhado de pão de azeitonas, amêndoas frescas, vinho tinto e água com gás.

Revelou-se que duas latas de atum para quatro pessoas foi um exagero. Guardei as sobras na geladeira, esperando pela primeira oportunidade para poder gasta-la. E ela apareceu numa outra noite, em que atacada novamente pela exaustão, abri e fechei as portas da geladeira e da despensa 8754 vezes sem conseguir pensar em absolutamente nada fazível ou comível para aquele jantar. Resolvi finalmente por um macarrão, que cozinhei num potão de água com sal. Piquei um punhado de tomates secos, outro punhado de azeitonas pretas, três talos de cebolinha e separei a sobra do atum. Quando o macarrão ficou cozido al dente, escorri, voltei tudo pra panela e acrescentei os outros ingredientes, regando tudo com uma boa quantidade de azeite extra virgem. Daí foi só ralar um bocado de queijo em cima e devorar, com um ânimo que só a fome consegue dar à uma criatura tão cansada como eu tenho estado.

mãozinhas extras [na cozinha]

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Que delicia que foi ter a Patricia e a Livia me ajudando com a cesta orgânica nesta segunda-feira! A Pat lavou, secou e ensacou TODAS as folhas verdes, com a ajuda da Livia, que também descascou umas cenouras fresquinhas pra gente depois cortar em palitinhos e comer com um molho rancho improvisado, que ficou ótimo. Se eu pudesse ter mais mãozinhas assim na lavação toda semana. Fazer o jantar nesse dia foi uma tranquilidade…