choque cultural & feijão preto

Meus anos no Canadá foram um laboratório que me preparou para adotar um novo país. Lá eu não era imigrante, estava somente de passagem, mas mesmo assim inicialmente passei por todos os processos de adaptação necessários para me integrar a uma vida nova, com clima novo, língua nova, elementos culturais novos. Acontece com todo mundo, aconteceu comigo. O surto maior durantes todos os meus anos canadenses foi não poder lavar o banheiro. Onde está o maldito ralo?? Era a pergunta que eu não conseguia fazer calar, até aceitar o fato inexorável de que naquele país não se lava banheiro e pronto. Não foi fácil, mas todos os choques culturais que enfrentei lá me ajudaram numa adaptação mais tranquila aqui. Eu já cheguei nos EUA ajustada.

Um dos processos pelo qual passei foi o da aceitação dos novos ingredientes gastronômicos locais e o da autenticação da cultura gastronômica que eu trazia comigo. Você quer mostrar de onde veio, não só através da língua, música, costumes e comportamento, mas também através da comida.

A universidade que engoliu meu marido num programa de PhD promovia todo inicio de ano letivo sessões de orientação para os novos estudantes internacionais. Tendo participado do evento na condição de esposa do estudante internacional, percebi o quanto era importante tudo aquilo. Me inscrevi como voluntária para trabalhar nos anos seguintes. Havia posições em diversos pontos estratégicos, você podia ser guia de tours, dar palestras, ajudar na organizacão dos eventos acadêmicos ou culturais e também poderia ajudar na cozinha. Serviam-se lanchinhos para os participantes, que eram preparados e empacotados pelos voluntários da cozinha. Nem preciso dizer que a cozinha era o lugar menos atrativo, pois todos queriam voluntariar em posições mais bacanudas, demonstrando suas habilidades intelectuais e interagindo mais intensamente com o grupo de organizadores e os novos estudantes. Ser voluntário na cozinha não tinha concorrência, muito pelo contrário, nem sempre conseguíamos um número necessário de pessoas. Mas todo ano eu estava la, junto com os sempre presentes usual suspects. Era uma turma legal, com estrangeiros e nativos, que devido ao confinamento e as horas passadas juntos cortando cenouras em tiras ou tomates em rodelas, formou algumas boas amizades.

Mas o bacana desse voluntariado na cozinha era que no último dia da orientação rolava um banquete organizado por nós. Tínhamos que trazer pratos típicos de diferentes países, geralmente doados ou feitos pelos próprios voluntários. Essa era a parte que eu mais gostava, pois chegava a hora daquela gente bronzeada mostrar o seu valor, abafando com um belo e saboroso prato tradicional brasileiro. Desde o primeiro ano, a feijoada tinha sido eleita por mim o prato fino da bossa para representar o Brasil no banquete. Porque era bem típico, tinha uma história legal pra se contar se precisasse entreter a galera curiosa e era fácil de fazer em quantidade. Eu adaptava as linguiças, usava as polonesas e russas que abundavam por lá e adicionava beef jerk no lugar da carne seca. O resto eu fazia igual, feijão preto, bacon, alho, azeite, folhas de louro, panelão que cozinhava por longas horas até o caldo ficar grossão. Quando eu finalmente levava a panela de feijão para a festa era um êxtase coletivo. A minha feijoada era o prato mais esperado da noite, seguido pelas samosas preparadas por uma senhora indiana e que eram, sem dúvida nenhuma, as melhores que já comi na minha vida. No dia do banquete os voluntários da cozinha saiam do ostracismo do confinamento e viravam estrelas, protagonistas da festa.

Vestidos com nossas roupetas mais bacanas e ostentando os nossos sorrisos mais amigáveis, servíamos os rangos internacionais, explicando fatos de cada país, tradição e ingredientes. No meu caso, quando eu me prostrava em frente ao panelão segurando a concha que eu mergulhava sem parar na deliciosa feijoada, era só dizer—Brazilian black beans para provocar um excitamento geral na malta, que às vezes se recolocava novamente na fila para, timidamente, pedir para repetir. Nem sempre sobrava para os voluntários, então adotamos o hábito de separar porções individuais da feijoada antecipadamente. Claro que todo ano durante o banquete tinha sempre um ou outro que fazia aquela cara de fuínha quando eu pronunciava as palavras mágicas—Brazilian black beans. Se a cara entortava em sinal de nojo ou medo, eu já dizia sorrindo—acho que você vai se arrepender, e não vai poder voltar atrás, porque os feijões brasileiros NUNCA sobram pra contar a história!

15 comentários em “choque cultural & feijão preto”

  1. Oi Fer, que delícia ler seu post, ainda mais que nós brasileiros estamos acostumados a levar tanta porrada que quando um prato típico daqui faz sucesso, ficamos felizes. E só quem já ficou longe do Brasil sabe o quanto aqui é bom (e tem ralo :o)!
    Beijos pra você!

  2. Que texto gostoso, Fer. Você não decepciona jamais, nem nas fotos, nem nos textos.
    Esse negócio de ralo é uma unanimidade em termos de susto para brasileiros (ou só brasileiras?) fora do Brasil.
    Eu também levei um tempo para me acostumar com a idéia. Em Portugal, na casa da minha avó, havia ralo no banheiro, mas não na cozinha. Depois, quando morei em Lisboa, não havia ralo nenhum e isso sempre me deixava (e, confesso, ainda deixa) com a idéia de que não está realmente limpo.
    Tudo bem que se gasta muita água, mas é tão boa aquela sensação de limpeza, não é?
    Morei um tempo na França e ali também, nada de ralo. Em Londres há casas com carpete no banheiro. Aqui a mesma coisa. Não digo que me acostumei, mas já não é tão terrível como antes.
    Outra coisa bacana do seu post é o aspecto prazeiroso de se oferecer comida e, nesse caso, uma que, de certa forma, nos representa.
    Uma vez, quando morava na França, fui convocada para fazer um prato brasileiro. Fiz, pela primeira vez, uma feijoada e já estreei “a la grande”: eram 30 pessoas. Comecei a “premeditar o crime” na ante-véspera e realmente isso fez toda a diferença.
    Apesar de ter sido a primeira (ou foi justamente sorte de iniciante) ficou uma delícia e me deu uma alegria imensa falar sobre o prato e, mais ainda, ver que foi aprovadíssimo, já que não sobrou nem um grãozinho de feijão.
    Espero que esteja fazendo ainda aquele repouso fundamental. Beijos e bom fim de semana.

  3. Ai que delicia poder compartir essa abstinencia por uma boa limpeza pesada no banheiro hahaha,o primeiro apartamento em que vivi tbem tinha uma lavadora no banheiro(sem comentarios ;))Mas ralo e tanque é ruim hein de ter!!Me lembro que quase tomei um choque a primeira vez que entrei com vontade jogando agua nas paredes do banheiro e menos mal que a chave gerla da casa saltou senao eu estaria tostada!Mas é isso ai,nao dá pra ter tudo nesta vida …Adorei tua historia da feijoada,adoro intercambiar ideias e receitas com gente do mundo todo,é tao gostoso né?
    beijinhos e manda umas nectarinas pra mim,pque as daqui tao com gosto de joelho ..eca

  4. Aie, aie Fer! Que bom que está de volta com seus textos alegres! Fico imaginando a sua vida por estas bandas geladas e pensando que realmente todo imigrante vive situações parecidas. Além de não ter ralos, os banheiros no Canadá também não têm duchas higiênicas. Então, para poder lavar o meu banheiro (ou melhor, metade dele: a banheira e os tais azulejos da parede) fiz o maridoco instalar uma ducha e é ela a minha mangueira de guerra!(rs) Posso dizer que ela é a culpada pela mudança da minha vizinha do andar inferior…hehe
    Sem querer, querendo…resolvo também jogar uma água no chão do banheiro (de leve) e secar com o pano e eis que a dita cuja infiltrou um pouquinho. Dez minutos depois, surge a vizinha (uma québécoise típica) me perguntando se eu estava mexendo com água. Minha resposta: não! (no momento, nem tinha me vindo na idéia o lance do banheiro)rs. Três meses depois, a tal dona, que já morava lá há uns 12 anos, “déménage”! Deve ter sido um choque cultural pra ela…haha
    Quanto a lavanderia, que sorte a sua! Eu aqui já me considero numa boa só pelo fato de ter um “armário” para acomodar-esconder a dupla-dinâmica que lava e seca. Quantos apartamentos nós visitamos e claro, sem noção ter estas máquinas na cozinha ou no banheiro, um barulhão de matar! Um país vasto como este, as casas ou apês-casulos poderiam ter um cômodo a mais com um “tanque” e lugar para as tais benditas.
    Ah, vale lembrar que tanque aqui só conhecem os de guerra!rs
    E aí nos States?
    Boas lembranças estas Fer! Nada melhor mesmo para afirmar uma cultura do que a culinária! Os canadenses também não são lá atrelados ao fogão…comem bastante junk food e boa. Cozinhar, para muitos é “perda” de tempo! Mas, se acotovelam quando vêem os quitudes de outros países, principalmente os nossos ;). Ah, a feijoada e seu perfume delicioso…nada a ver com os sweet-beans americo-canadenses!
    Outro dia, respondendo a um e-mail de um conhecido francês que vai visitar a nossa terrinha (ele participa de uma associação que ajuda criaças “démunis”), me perdi relatando sobre as coisas que ele iria encontrar lá e principalmente, “la bonne bouffe”. Quando me dei conta, voilà moi discorrendo sobre tantos sabores que no final tive que me presentear com um bom “feijão tropeiro”. Ah, hummm…
    Bijus Fer. Adorei a tb aventura na casa das amigas 😉 e o pesto de basilic 🙂 Mil desculpas pelo comments gigantesco…:)

  5. Oi Fer:
    Nossa, eu não sabia dessa história dos “sem ralo”. Acho que eu daria um jeitinho usando o do box. Certamente vc fez isso….ahahah.
    Dia desses um colega voltou da Itália e contou que por onde esteve não viu casas com lavanderia pois as máquinas de lavar e secar são nos banheiros. Eu arrepiei, pensando na energia !!
    Já a sua história da feijoada é muito interessante, me pego pensando como uma coisa aparentemente tão simples causa tanto alvoroço né!!!
    Um beijo, vejo que já está bastante bem.
    Bom final de semana.
    R: Ana, pior eh que na minha casa canadense nao tinha box, era so banheira. Aqui tambem ha casas e apartamentos com lavanderia embutida no banheiro ou num armario. Felizmente nunca tive isso. beijao, Fer

  6. Há um blog chamado Sem Ralo, que copia e cola trechos da indignação dos brasileiros blogueiros com a falta do ralo em outras terras.
    Ahhh, eu adoraria entrar nessa fila (duas vezes pra repetir) para provar essa sua feijoada.

  7. Fer, q engracado ler sobre o ralo!
    Eu logo q mudei p/ ca nao me conformava q nao tinha ralo na cozinha e no banheiro, vivia falando “aonde ja se viu uma coisa dessas”!
    Depois a gente acostuma ne, mas eu logo de cara apos uns dias morando aqui resolvi tascar um balde de agua p/ lavar a pequenina (era uma micro cozinha mesmo!) cozinha do apartamento… eis q nao achei ralo p/ escoar a agua. Fer, que apuro, liguei correndo p/ meu marido no servico e perguntei “cade o ralo da cozinha?”, imagina o meu espanto ao ouvir q nao tinha ralo, e eu recem casada tbem nao tinha muitos panos p/ me ajudar a mop toda aquela agua, passei uma tarde e tanto aquele dia, eu a cozinha, a cozinha e eu!
    Adorei sua historia da feijoada tbem, Brazilian black beans sao sempre sucesso nao!?!
    Beijos!
    Ana
    R: HA HA HA! Ana, eu fiz IGUALZINHO, joguei balde de agua, mas conscientemente. Era uma trabalheira dos infernos. Fiz ate que comecou a apodrecer umas partes do batente, dai eu parei e me conformei. Hoje nem penso mais nisso. Tem que se adaptar, neh? beijao, Fer

  8. Brasileiro não ver uma poeira que já calça o chinelo de borracha, pega o balde de água, o sabão e a vassoura! rsrs
    bjinho.
    R: Nina, acho que o brasileiro eh o unico povo do mundo que lava absolutamente tudo–banheiro, cozinha, quintal, calçada, paredes, teto… haja agua pra alimentar essa obsessao por limpeza, hein? beijos, Fer

  9. Adorei, Fer!
    Mas a pergunta q não quer calar é: e aí nos USA, tem ralo? Noutro dia tive um problema de infiltração no meu banheiro, e o cara da construtora teve o desplante de dizer q o problema era que eu lavava o banheiro. Q o melhor era só passar um paninho…
    Aliás, já viu um filme brasileiro que foi lançado no começo do ano, “O Cheiro do Ralo”? Acho que você ia gostar…
    Ainda bem q vc melhorou!
    1 beijo
    R: Valéria, aqui nos EUA também nao ha ralos…. :-/ beijo! Fer

  10. Fer,esta do ralo do banheiro é internacional hahaha,esta história de jogar água com vontade é hábito brasuca total. Feijoada sempre agrada a galera ,na Alemanha a gente se reunia de vez em quando em torno de um panelão e dificilmente alguém torcia o nariz. Lembro que uma vez fiz “negrinhos” coloridos e branquinhos pro filho de uma amiga que fazia 4 aninhos e foi um sucessão com a gurizada rsrsrs beijo!

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